Desnorteado (3)

22.8.12
No primeiro andar da casa, no muro da varanda sobre um telheiro, a atenção de três rapazes aí sentados voltou-se repentinamente para a chegada de um grupo de raparigas estrangeiras. Eles, nitidamente no engate, disseram ei putas, em inglês. Elas desapareceram conforme tinha aparecido, no escuro. Um levantou-se nas telhas, bateu no peito como o Tarzan. O segundo arrotou. O terceiro bateu palmas. Já não havia ninguém na plateia.

Desnorteado (2)

19.8.12
Também tomada em certos meios por colónia britânica de baixo aluguer, a província portuguesa do Algarve tem o carvão todo em brasa e os inquilinos na grelha.
O prato chega à mesa com este aspecto: ombros chamuscados, narizes esfolados, rosa carne , corpos enfim num estado que só passará no dia em que perceberem que o sol não é forno, nem eles são lombo.

Durante o dia interrompem a grelha e deixam-se estar a boiar no caldo, longe da erva da ilha, lembrados de que o céu não é pintado de cinzento na sua totalidade. À noitinha comem gelados do tamanho da torre dos clérigos, dizem que ajuda a empurrar o boi servido ao jantar e que tem efeito calmante nos depósitos previamente atestados de cerveja.
Cada barriga, sua sentença.

Desnorteado (1)

18.8.12
Ali para os lados de Neves-Corvo, uma manada de vacas da cor do chão, que por sua vez é cor de camelo, conta carneiros.
O dormitório, detalhando a quem não o viu, e diz quem vem da auto-estrada, é um cemitério de cornos quietos. Existem por ali as ruínas de um casebre, um sobreiro seco e mais nada.
A solidão e os cornos vivem juntos. O deserto das metáforas vai ficando para trás.

23 graus no bolso dos calções

16.8.12
Não tendo nada em comum, as cubas de vinho do Peso da Régua, obviamente sem portas, janelas ou telhado, fazem lembrar o casario de Santorini. Deve ser do branco
cal e das encostas onde as puseram.
Estas cubas levaram com um parque de estacionamento em cima. O parque é para dar vazão à clientela de um hipermercado, que se não rolou pelos montes, nem chegou pelo rio, saiu das cabeças metropolitanas e espetou-se nos chãos onde nasce o vinho, com vantagens e desvantagens, tendo para o caso valido a pena por isto: a secção dos livros dá descontos de dez por cento; um espião perfeito estava dois euros mais em conta, mas como tinha umas amolgadelas foi trocado pelo livro que estava em baixo; o volume, esquecido no fundo da estante, ainda tinha o preço da feira do livro e custava quinze euros; numa manobra de espionagem, ficaram mais mil escudos no bolso; muito longe do frio, o Douro brilha aos trinta graus da Régua; no bolso dos calções, ao lado dos mil escudos, o telefone marca 23 graus; telefone não é termómetro; ao longe os socalcos já não parecem as cascatas onde moram os gregos felizes.

Douro Futebol Clube

15.8.12
A bancada cheia de uvas, o rio da cor da relva, os barcos marcam o campo com linhas brancas, as balizas imaginárias, jogadores com guelras dentro do tapete, o amor interior, lugares cativos, o sol também veio, transmissão em directo, futebol sem bola.

Parece que foi ontem

11.8.12
No princípio dos anos 80, o cartão de atleta da Associação de Futebol do Porto dava-nos acesso ao livre-trânsito , que normalmente ficava no peão das Antas e do Bessa. O lugar não era o melhor parar ver futebol, principalmente a baliza lá do fundo, mas a entrada era gratuita e punha-nos na moldura dos jogos mais importantes da época.
Os cartões, entre nós, desde miúdos e até aos 18 anos, eram, num tempo em que ninguém ainda tinha carteira, o bem pessoal mais valioso, logo a seguir à bola. Se um ou outro amigo adoecia, emprestava o cartão de atleta a quem não tinha, lucrando com isso rebuçados durante uma semana, gasosas, bolos na escola, lápis, canetas, ou pura e simplesmente consideração e amizades.

Nas tardes em que havia um penetra, o coração, que já ia aos saltos com os futebóis - ganhar ou perder na adolescência é vida ou morte- ficava pior que o tambor da máquina de lavar roupa. O sucesso do esquema dependia muito da calma e do tamanho do dedo polegar do penetra, com o qual tapava a foto. Convinha também ter na ponta da língua o nome completo do atleta verdadeiro. Dava jeito quando penetra e atleta eram parecidos, se bem que nos anos 80 e a preto e branco podíamos ser todos irmãos.

Ontem à noite (10 de Agosto) a Associação de Futebol do Porto encerrou o primeiro dia de comemorações do Centenário. O senhor Burns, patrão do Homer Simpson, podia ter entrado na sala, e nem precisava de grandes polegares para se sentar sem ninguém dar por ele na cadeira do presidente.

Na parede/galeria dos antigos presidentes muitos julgarão ter
visto o Marlon Brando, que por muito bom padrinho que tenha sido, sinceramente não o vejo a dominar a bola num gabinete com a mesma facilidade.
Esta questão dos sósias - sósia que o dicionário da Porto Editora define assim: "antropónimo, nome do escravo, pajem de Anfitrião, de quem Mercúrio tomou as feições" - deixa-me outra vez à porta das Antas e do Bessa. Parece que foi ontem.

Ainda o sangue na arena

11.8.12
Ir a casa da família de uma pessoa que morreu num acidente pedir uma fofografia do morto não é jornalismo, é uma filhadaputice. E se filhadaputice não vem no dicionário, o dicionário é que está errado, não sou eu.

Não me digas o que estou a fazer. Eu não quero saber *

10.8.12
Crónicas marcianas. O chefe de redacção não deve esperar mais do que crónicas marcianas quando manda um jornalista vestir o capote de extra-terrestre e o teletransporta para a areia da praia onde um rapaz tinha morrido afogado ontem. A notícia já tinha sido dada, lamenta-se profundamente o óbito e deve-se, depois da informação estar dada, preservar e respeitar o anonimato e a dor da família que acabou de ser abalroada pela tragédia.
Nunca irei compreender a doença que atinge as pessoas que teimam em caminhar sobre notícias tristes, que pisam os fracos, que esfregam as mãos e nem as chegam a sujar na tinta das primeiras impressões, e que a seguir mergulham no estio como se a notícia do afogamento de um adolescente fosse apenas o conjunto das letras de um título funesto.
Crónicas marcianas. O extra-terrestre tem um gravador com sensor de lágrimas e manda tiros certeiros em nome de mais um paragrafozinho. A máquina fotográfica anda à procura do cadáver e só tem ordem para baixar a lente quando conseguir colocar na mesma moldura pele, lençol e padiola.
Nunca irei perceber a curiosidade da corrida para dizer que há morte em Marte.
Nas Crónicas Marcianas, de 1950, Ray Bradbury introduziu o livro de contos com uma citação do realizador Federico Fellini: "não me digam o que estou a fazer. Eu não quero saber*". Dias há em que o jornalismo dos outros me faz querer ir embora de vez do meu jornalismo. Mas não me digam o que está a acontecer à minha profissão. Eu não quero saber. Há-de ser uma questão de tempo até que todos saibam que os marcianos não existem.

Chamadas telefónicas (1)

10.8.12
O telefone de um jornalista morre quase todos os dias.
O meu já não morria desde o dia 29 de Julho, foi num domingo ao fim tarde, estavamos nós a lidar com touros e cinquenta protestantes taurinos ao largo de uma arena montada para o efeito de uma corrida na Trofa.
Saiam já daí, disse quem nos ligou. Está um rapaz desaparecido no areeinho de Gaia! O telefone morreu deviam ser seis da tarde e ficou morto até hoje.
Hoje, igualmente às seis da tarde, o telefone voltou a morrer, desta vez no jardim de Teófilo Braga, na Praça da República, no Porto, andava a reportagem a fazer perguntas a cinquenta professores insatisfeitos de uma coisa chamada plataforma pela educação. Fomos embora porque nos disseram saiam já daí, está um rapaz desaparecido na praia de Miramar, em Gaia.
A esta hora, o telefone está aqui quieto e desespero-me porque sei que não vai ficar morto para sempre.

Esta forma de dizer as circunstâncias da morte é do J.Rentes de Carvalho, e no blogue dele, Tempo Contado , foi onde a aprendi.
O título Chamadas Telefónicas fui buscar a um livro de contos de Roberto Bolaño. O título do blogue pendurou-se nos Últimos atardeceres en la Tierra, do mesmo chileno.

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