UM PORTO COM ÁGUA SEM GÁS

30.1.14

Do interior desta quinta-feira ficam-me os carros na moldura do rio, a água a borrar a pintura, a ponte a subir para Gaia, a pedir que ninguém vá embora por causa do inverno.  E ninguém foi. Fez-se  este trânsito todo na margem e a espera deu em fotografias do tamanho de um azulejo. 

NOVE

25.1.14


Em 1942, os melhores avançados sul-americanos, que eram  nove, não tiveram campeonato do mundo de futebol.  Hector Plata, argentino, narrador de golos profissional, enviado da Radio Golito, percorreu o continente à procura de uma história com sentido de baliza e o que encontrou foi um grupo de homens sem sentido de vida.
Afastada geograficamente da Segunda Guerra Mundial, a América do Sul escapava à mortandade da Europa e continuava a viver a paz possível entre velhas ditaduras e novas liberdades. 

HOME SONGS (volume um)

17.1.14

This must be the place. Um irrepreensível filme, com um irrepreensível Sean Penn e uma irrepreensível banda sonora, na minha Dublin de 2011, com Talking Heads pelo meio da fita, num lugar muito feliz. Lindo. Estive ao lado de James Joyce, marquei um golo na baliza do Falcao, ouvi o Jeff Buckley no Temple Bar, a rainha de Inglaterra passou por mim na rua, senti-me em casa.

APONTAMENTOS DA CIDADE CINZENTA

17.1.14


Pela frente do Hotel Boa-Vista, seguindo para norte, quando a estrada volta a dar à costa, mais quilómetro menos quilómetro, o ocidente deslumbrante acontece, independentemente da gradação da luz ou da estação do ano que esteja a mandar no dia. 
A esta hora, quase nove da manhã, Vila Nova de Gaia inteira está a pôr-se em cima das pontes modernas, tanto melhor, porque bem mais perto do lombo do Douro, o tabuleiro inferior da ponte D. Luís tem o asfalto vazio e o caminho livre. Que bem se entra por aí no Porto e que bom é ver logo a seguir que algo de bom, e de belo, anda a ser feito nos edifícios da parte mais baixa da Rua dos Mercadores.  

AINDA BEM QUE PAREI PARA METER CERVEJA

14.1.14

Há por aqui em Portugal dois ou três melhores do mundo no campo da literatura. Só que o mundo infelizmente ainda não sabe deles. Um é o Afonso Cruz, que escreve pontapés de bicicleta em todos os jogos (livros), que em todos os jogos (livros) mete golos na memória como quem põe a bola dentro da baliza e que nesses mesmos jogos (livros), nem se dá pela passagem dos minutos (páginas). Hoje, no regresso a casa, parei na FNAC e comprei "Jesus Cristo bebia cerveja". É muito bom, logo desde o pontapé de saída.
Ao chegar à loja, e antes de me meter na cerveja,  ainda vinha meio embriagado com a Bola de Ouro do Ronaldo, um futebolista perfeito, tão perfeito que até o português lhe foge da língua para as chuteiras, que é de onde os jogadores melhor dizem as coisas, mesmo que as digam com pontapés na gramática. Viva Ronaldo. Viva Afonso.

AS GRANDES SAUDADES DAS PEQUENAS COISAS

13.1.14
Cheguei a ter um carro do tamanho de uma despensa. Orgulhava-me de o poder levar para qualquer sítio, para os lugares mais improváveis, onde os outros não conseguiam ir. Às vezes, só para me exibir, estacionava-o lá em cima, no canto de uma fotografia. Noutras ocasiões, entre o vermelho e o verde de um semáforo, sentava-me com ele ao piano e lá ficávamos os dois, na montra da loja de instrumentos musicais, feitos um para o outro, muito seguros da nossa eternidade.


UM CAFÉ PODE MUDAR UMA VIDA

13.1.14

No fim de uma rua e no principio de outra, em Matosinhos, um homem tira os óculos, encara a luz, bebe o café - com o qual gasta o açúcar todo - e começa a escrever um livro. Ao livro acabou-o numa noite já de outono. E agora o que faz com ele? Vai direitinho, e orgulhosamente, para a gaveta até que melhores dias o queiram tirar de casa.
Apesar da solidão da imagem, nota-se que a mesa está cheia de gente, pelo menos tem as marcas do tempo que por ali passou e que por ali vai passando, e se o tempo passou, pessoas passaram. Bom sítio para ir buscar personagens é ao tampo descascado de uma mesinha de ferro e à sua ferrugem.

PERGUNTAR AO PORTO

10.1.14

Em termos de trabalho, este foi o dia mais bendito do ano. Porquê? Por causa dos portuenses que encontrei pelo caminho e que me encheram o microfone com respostas sorridentes, sensatas, puras e simples. As perguntas levavam todas, sem excepção, Lisboa na ponta da flecha. E a todas elas eles responderam à moda de um Porto de bem com a vida, urbano, hospitaleiro, adulto, sincero. 

O microfone apontou a língua a homens e mulheres de todas as idades. Na resposta o Porto disse que Lisboa é uma cidade linda, ampla, de grandes avenidas, belos os monumentos, bons pastéis de Belém, e que antigamente o melhor da capital era o comboio rápido para Porto. O Porto disse que o pior de Lisboa está nos arredores, que a cidade é feia vista de trás. E que o lá o trânsito também não é nada bonito.
E onde se trabalha mais, em Lisboa ou no Porto? A perguntou tombou e o Porto agarrou a deixa: "nem em Lisboa, nem no Porto. Há pouco trabalho com esta crise".
Sobre a simpatia das pessoas, o Porto disse a Lisboa que as pessoas do Porto são mais simpáticas.

O Porto abriu o livro e foi como se eu tivesse entrado numa música dos GNR, feita à medida de um filme com final feliz. Um inesperado dia de primavera no inverno.

E DO OUTRO LADO, O PORTO *

9.1.14
"E do outro lado, o Porto. O bilhete de identidade dos tripeiros como um quadro desenhado na margem, imponente, duro, verdadeiro e velho, uma obra de arte acidental, a cidade mais o seu povo, semeado naquele chão".

*Extraído do livro Fumadores.

PESCAR NO SPOTIFY - WILLIAM FITZSIMMONS

7.1.14

ALERTA VERMELHO

7.1.14
Hoje à tarde, na Foz, a onda demorou um minuto a regressar ao mar. Ao fim de uma hora o susto ainda não tinha saído da cara dos homens, apanhados de surpresa pela tempestade Hércules, que levantou dez carros do chão e arrastou um incauto casal de peões em frente ao Clube de Ténis. 
O litoral norte está em alerta vermelho desde domingo. O temporal está a morder a costa. É fugir da boca do lobo.

REZAR COM O ANZOL

5.1.14
Enquanto um fuma, enquanto um fala e o outro escuta, enquanto isso, a areia diz tudo sobre o caminho dos homens e o mar nada revela sobre o dos peixes. Mas os homens têm tempo. Vão ficar à espera que o mar mude de ideias, que ponha a boca no anzol, que sangre, que se perca na sua inevitável memória de peixe.  E que volte a dar uma esmola com espinhas.

FILME DE UM SÁBADO À TARDE

4.1.14

Life In Film -"Sorry" from The Psychonauts' Ball on Vimeo.


Ao contrário dos campos de futebol, nos centros de saúde ninguém passa bola a ninguém. No meio da minha parcela de silêncio, deixei-me estar obviamente calado, mas fui existindo. Li umas quantas páginas do Don DeLillo sobre o homicídio do Kennedy, páginas repletas de Lee Oswald, CIA e Cuba.  Deixei-me ficar mais algum tempo no anos sessenta, dentro do livro. 
Quando decidi que era a altura de regressar à vida real, continuava a ter por companhia os mesmos pacientes, calados. Meti as mãos ao telefone e varri as aplicações doentes, que já não me diziam nada. Por fim fui descendo pelo buraco do Shazam e encontrei este Sorry, de Life in Film, registado há dois anos, entre muitas músicas que ao longo do tempo fui pondo sob escuta. 
Estive para perder a vaga. A doutora mandou chamar um António Augusto. Sem ter a certeza de ser eu, avancei para o consultório e o que ganhei com isso foi Azitromicina. 

PESCAR NO SPOTIFY - STRFKR

3.1.14
No Spotify o peixe vem sempre à rede. Hoje apanhei este espadaúdo exemplar de STRFKR, matrícula que esconde o nome verdadeiro, Starfucker.

RESSUSCITAR UM BLOG

3.1.14
Não sou do Porto, mas ando lá perto. Nasci do outro lado do rio, cresci, por lá (cá) fiquei, a sul, nunca muito afastado da praia, em Gaia. Trabalho a norte, numa terra de pescadores, mesmo em frente a uma fábrica de conservas, em Matosinhos. Todos os dias o jornalismo me cheira a sardinhas em lata. No zodíaco o meu signo é peixes. Parece fazer sentido, a vida encostada na orelha do Altântico, umas opções encaixam nas outras, o caminho tem sido este.

Dias há em que sou o homem dos pés azuis e do tronco cizento. O homem das pernas de ganga e das mãos nos bolsos. Dias há em que sim. Dias há em que não. 
E lá vão passando por aqui as últimas noites da Terra, sendo certo que nem todas as histórias terminam em Vila Nova de Gaia. 

VER RAY DONOVAN

3.1.14
Condenado ao sucesso. Liev Schreiber, que é igualzinho ao meu amigo Miguel, é Ray, protagonista do mais recente êxito da Showtime. Não vai há tanto tempo quanto isso, disse-me a Sharon Stone que o Liev é um dos homens mais talentosos do negócio. Ela contracenou com ele no filme Fading Gigolo. Fiquei cliente do Liev Schreiber quando ele, em 2005, realizou o Everything is Illuminated. Vou segui-lo agora na série Ray Donovan, a ele e ao tipo que faz de pai dele, o Jon Voight.

A primeira música de Ray Donovan é esta, Lose Your Soul, de Dead Man Bone´s. Canta o Ryan Gosling. E toca e compõe. 

Dead Man's Bones - Lose Your Soul from DandyJon on Vimeo.

LER BOGOTÁ

2.1.14
Nas noites de Abril, em 2013, o Hotel Tequendama, num recanto da Carrera 10, encheu os quartos com escritores, editores, livreiros e jornalistas portugueses. À porta, turnos e rondas de militares adolescentes. Ao cabo destes meses todos, seguram-se à memória os seus capacetes brancos, as suas fardas verdes, as botarras pesadas e claro, as metralhadoras, entre a palma da mão e o ombro. Das suas barbas, nada. Nem um pêlo. Não tinham.  Era ainda cedo para haver indícios de bigode ali a um palmo do cano da máquina de fazer mortos. 

Numa dessas manhãs de Abril, a caminho FILBo, Feira Internacional del Libro de Bogotá, um par de outros militares precoces desfilava metralhadoras e caras de mau, salvo erro na Carrera 25. O mais temível, ameaçava quem passava com os olhos, nem se lembrando do chupa-chupa que tinha na boca e que lhe desenhava uma bola na bochecha. Não é que em Bogotá a segurança esteja a dar os primeiros passos, é que ainda não cresceu tudo.

E porque também houve dessas tardes de Abril, numa delas, a meio da Calle 11, a uns trinta metros do Centro Cultural Gabriel García Márquez, faltavam dez minutos para as sete horas, o padeiro estacionou a bicicleta e foi vender pão ao restaurante, o estudante chegou mais perto da biblioteca, os pedintes encostaram o peditório nas costas da igreja, a chuva tinha acabado de ir embora, o pai fechou o guarda-chuva, mas a filha não, e esta nesga de minuto, toda junta, foi eleita a melhor imagem do dia no Instagram da Colômbia.  

COMER MADRID

1.1.14
























Depois de ter acontecido, foi mais ou menos isto: uma noite bem dormida no Hesperia Imperatriz, ao lado do Paseo de la Castellana, e o resto do tempo, dois dias, acordado, mais atento ao futebol da Liga dos Campeões do que à capital espanhola. Ainda assim, fora do jogo, alguns momentos houve da mais extraordinária capacidade turística, momentos à mesa, de faca e garfo ou nem por isso. Sobretudo nem por isso. A começar no Mercado San Miguel, amicíssimo da boca. Cañas, jámon, pulpo, pimentos, huevos,  isto serve, chega e sobra, no imediato, para matar as saudades de comer outro idioma. 

Foi o suficiente para aguentar duas conferências de imprensa e um treino, do FC Porto, no Vicente Calderón. E a montagem das reportagens. Entretanto a hora do jantar já tinha ido embora. Para lá das onze da noite, com a fome na ponta de língua, Madrid ainda tem a cozinha aberta. Carne grelhada, verduras e pescado a dividir por sete jornalistas, com uma conta muito em conta.

No dia seguinte, ao almoço do jogo, uma visita à Casa Salvador, restaurante Champions League, carne bola de ouro, para aficionados, mas não só. Uma febra de ternera resolveu o assunto e aguentou o apetite até ao aquecimento do Atlético de Madrid - FC Porto. Um bocadillo de jamón, comido a correr no estádio, não sendo a melhor saída de Madrid, era a única saída, e o comedor, entre a espada e parede do estômago, comeu.  

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