TUDO ISTO PARA DIZER QUE UM LIVRO...

25.4.15
O arrumador de carros contava as últimas do seu dentista, ao fim e ao cabo um arrumador de dentes postiços, dizia-me ele, desdentado, destapando a inabilidade de arrumador do dentista, ou então pondo a nu a falta de cálcio da sua pequena história, inventada só para mim, à espera de que me caíssem cinquenta cêntimos de uma mão e um cigarro da outra, mas eu nada, nem uma nem duas, mais atento à falta de comparência dos incisivos do que ao rigor das palavras que ele assobiava, porque lá está, quanto menos marfim, menos latim.

Tem tudo isto a ver com o escritor cubano Reinaldo Arenas, com o período da sua prisão no Morro, onde, para além de tudo o resto, era a fome tanta e ele, certa vez, no escuro, ao dar com um saco cheio de pães, mordeu forte e feio, mas de tal forma que partiu dois incisivos. Às mãos da ditadura, regime arrumador de pessoas, passou a ter nenhum motivo para sorrir, mais um.  
O arrumador, que me apareceu do tronco de uma  árvore como quem vem do passado, lembrou-me de andar com livro para trás. A página 288. A página 288. Tinha jurado não me esquecer dela, do último parágrafo que ela deixou entrar. E que dizia, a propósito da entrada no Morro: ”Em O Mundo Alucinante eu falava de um frade que passara por várias prisões sórdidas (incluindo o Morro). Quando ali entrei decidi que dali em diante teria mais cuidado com o que viria a escrever, porque parecia condenado a viver no meu próprio corpo o que escrevia”.
Antes que Anoiteça. Retirei as linhas anteriores de um livro com tanto passado e mais este. Veio pelo correio. Chegou numa sexta-feira. O livro impossível, que eu procurei no Porto durante uns bons dez anos e que fui encontrar onde menos esperava. Muito obrigado Dora

A morte do Pintassilgo #9

15.4.15
Fim.
A ave morreu, com penas e tudo, trinchada ao longo de quase 900 páginas. E agora está embalsamada, com toda a palha que tem lá dentro, deitada sobre um alinhamento de livros, porque na estante não cabe mais ninguém. Lembrete: comprar outra estante. Por outro lado ganhei um novo habitante da minha memória, Theo Decker, personagem principal, narrador, perturbado, antiquário, humano da cabeça aos pés.
PS: Mora lá em baixo uma música muito linda.



O Diário d´O Pintassilgo #8

7.4.15
Gostaria de ter entrado mais cedo no Pinhão, de onde é natural, e residente, a senhora Aurora Santas Noites. Aurora faz parte dela desde que se conhece. Santas Noites veio com o matrimónio, o que faz todo o sentido, e ainda bem que assim é, fruto do apelido entusiasmante do marido.

Aurora Santas Noites tem um filha muito bonita, diz, cujo rosto está na Quinta Avenida, em Nova Iorque, é modelo fotográfica a rapariga. E tem um filho, o melhor piloto de carros do mundo, diz, e diz que o impediu de jogar à baliza no FC Porto porque tem medo de aviões, ele podia cair, e ela não ia aguentar. Assim o filho ficou-se pela trave e pelos postes do Alijó e arredores, voou rasteiro.
Encontrei Aurora à dez da manhã, ao fim da ponte.

Depois de Aurora, a jornada serpenteou quintas e vinhos, fez tangentes, não foi lá. Quedou-se pela beira do rio e na beira do rio encontrou o país mais barato, mais antigo, mais combustível, com cinquenta litros de gasóleo pela melódica quantia de três euros e quarenta cêntimos.


Durante o dia inteiro o Douro não parou de bater à porta. O Pintassilgo ficou em casa, coitado, tão longe tão longe desta vista.


Para fechar o relato, duas réguas sobre o rio, entre as margens.


Falta só dar de comer aos ouvidos. Bom proveito ;)

Diário Ornitológico #7

7.4.15
Olhos melhor informados saberão do que eu não sei sobre a obra da pintora Armanda Passos, exceptuando algumas informações que as últimas semanas puseram diante de mim. Primeiro, que o Major Valentim fazia de gala ter em sua posse uns quantos quadros. E segundo, que esta serigrafia sobre tela ocupa uma das paredes do Hospital de Dia do IPO do Porto, coberta por um acrílico à prova de azares.

É um homem ou uma mulher? Uma galinha ou um pato? Não estou certo.

Pus-me a desfiar o livro (O Pintassilgo) em cima do muro do Insituto, ao sol. E à sombra, num corredor de frases sobre esperança.
Lá em baixo, no sítio do costume, a sul do post, deixo os meus queridos Strand Of Oaks. Eles estão a tocar Plymouth, que é como quem toca o céu.


O diário do coiso #6

5.4.15
Calcadas quinhentas páginas, leitura feita a mais de metade do caminho, O Pintassilgo não se aborrece nem me aborrece. Morreu gente, anos passaram, duas cidades aconteceram, o adolescente Theo passou por isto e por aquilo. Aí, no decurso da narrativa, a pena da escritora não adormeceu.
O quadro de Carel Fabritius está em boas mãos.




O Pintassilgo anda a ser lido quando pode em Vila Nova de Gaia, terra de lombada farta, como a do livro, terra de terra, de muita terra, mas também terra de muito mar, de tanto mar.  Por estes dias de sol mandão as flores já espreitam quem lá vem.

  A maré deste domingo trouxe música feita à medida do meu anzol. Eu pesco.
 

O diário d´O Pintassilgo #5

2.4.15
O livro escolheu uma das mesas livres na rua do Mar, na Aguda.
Pediu um café, tomou um café.
Foi lido pelo sol durante duas horas. Também o vento passou por ele. Algumas crianças e a suas bicicletas meninas iam e vinham.
Pediu uma água lisa, bebeu a água lisa.
O livro escolheu ir embora dali às quatro da tarde. Conduziu-se para o ginásio. Treinou, suou, lavou-se. O livro só não foi ao ensaio na Casa da Música. Ficou a descansar no carro, em frente ao Bom Sucesso. Nem quis jantar o pão, as pataniscas e as moelas.
PS: a música de hoje é dos Tame Impala, Let it Happen, que cá voltará quando houver vídeo. Fica, como é costume, arrumado lá em baixo, o som.


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