Arcozelo, Islândia

18.10.19
O outono regressou e agora a música do Olafur Arnalds está outra vez afinada. Consigo ver pelo postigo do escritório o maravilhoso penteado afro da tangerineira no jardim, algumas árvores chamam por mim, e nesta aprecio violinos e pianos calmíssimos quando pára de chover. Entretenho-me com a sinfonia das gotas de água na folhagem, os movimentos súbitos e as quedas, os comportamentos sedentários.
Estamos todos cinzentos: a capa do livro de jornalismo, o céu, a minha camisola e o seu carapuço, a música, a reportagem dos incêndios num televisor sem som, a almofada do sofá, a secretária, os pés da cadeira, os meus pés, a capa do suplemento cultural, a primeira página do jornal e a temperatura. Mas o verde é mais verde em tudo e mais do que tudo na relva, o outro livro em lista de espera ficou absolutamente alaranjado. A luz de outubro não faz grandes discursos, mas está atenta a todos os pormenores e deixa-os brilhar.
Tenho uma árvore no jardim. Quase não há árvores na Islândia. Num velho ditado pré-reflorestação, contado aos turistas em jeito de anedota, eles costumam dizer: “se virem na Islândia três árvores juntas, estão a ver uma floresta”. Faltam-me duas árvores para ter uma floresta. 

Algumas anotações corporais:

15.10.19
a) dores expansivas na planta dos pés. Afinal prolongam-se. Após uma conclusão inicial e errónea, percebo, sobem pelo lado interior, dão a volta ao osso do dedo maior, parecido com um pequeno tornozelo, já agora, e descem pela beira dos dedos, espalham a dor a descer, é tudo muito rápido, conseguem ver melhor o que estou a dizer se conseguirem recordar qualquer excerto de filme com montanhas russas, percebemos melhor o que queremos dizer ao dizermos descer, pois então a dor empola e expira, como um pulmão a pulmonar, talvez mais forte, como se batessem dois corações nos pés, e doem; b) as pálpebras não se aguentam em pé, a retina a esta hora é feita de vidro laminado, e o vidro nunca se deu muito bem com a pele, o vidro nunca se deu muito bem com ninguém durante séculos, tirando as janelas, mas com tempo aprendeu a fazer garrafas e a ajudar automóveis e telefones, mas o problemas do vidro é que o vidro é de vidro e parte, tirando isso nada contra ele e até muito obrigado por tudo, mesmo se me risca a pele das pálpebras; c) o invisível crescimento dos pelos das pernas voltou a aparecer, vejo pequenos riscos negros, chuva miúda de uma banda desenhada, um pouco por toda a parte e tento compreender se o invisível crescimento da relva do jardim é comparável, tento no fundo perceber qual dos dois tem maior velocidade de ponta, mas depois penso melhor, sinto que levei o meu tempo livre a um stand de automóveis e saio dali a todo o gás, quando digo dali, digo daquele pensamento; d) um ligeiro formigueiro na barriga das pernas, mas nada de significativo; e) procuro cafeína para relacionamento breve.

Leio dois

15.10.19
livros a duas velocidades, um faz cem anos no próximo ano, o outro fez agora trinta e cinco, leio muito mais devagar, e seguramente com muito mais atenção, o primeiro e um pouco mais a correr o segundo, porque o primeiro há-de continuar por cá a acolchoar não só próximas leituras, como também o meu estudo vagabundo do ofício, mas não é tudo: o primeiro tem o tempo inteiro lá escrito.  O segundo é muito bom seguramente, e um belo narrador do seu tempo com certeza, e de leitura sem escavações, mas o outro, que terá cada vez menos leitores à medida que os séculos se apresentem ao serviço, é uma inesgotável fonte de conhecimento na relação entre o homem e a palavra.

COMEÇOU A SER

15.10.19
colocada a hipótese de irmos a Braga no sábado à tarde ao balcão do restaurante de um centro empresarial no Porto. Almoçamos bacalhau com broa. As empregadas de mesa trouxeram diversos  jarros de vinho branco para a mesa, a conversa fluiu cristalina e entremeada por segmentos hilariantes de passado, atada por fortes laços de amizade, reconstruiu-se ali à beira dos guardanapos de pano e dos pratinhos com palitos uma década caída em desuso, as goivas dos entalhadores, apareceram dedos sapateiros furados de vez em quando pelas agulhas deeeeste tamanho a mostrarem as feridas de guerra, também vieram a lume algumas notícias com defeito fabricadas em jornalismo tosco. Impunha-se um bom café e um bom café começa no aroma e termina na cobertura espessa. A hipótese então, colocou-a ao balcão já em tempo de despedidas um dos mais novos antigos pugilistas deste encontro anual. A sua esteira propunha uma visita ao ginásio do bairro onde mora e procura disseminar, com luvas, comportamentos exemplares em contextos difíceis. Três dias mais tarde a história viajou pela primeira vez de máquina de filmar. Trouxemos connosco umas boas duas de horas de gravação. Entretanto anoitecera. Reduzimos, no dia seguinte, as duas horas de filme a três minutos de reportagem. E uma semana bem pesada, sem tirar nem por, sobre a colocação de uma hipótese, a hipótese converteu-se em alinhamento de jornal televisivo e posteriormente numa troca sentida de mensagens. Humanos em fase de construção, construindo-se.  

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