O SOL EM MARCHA

30.10.15
Nenhum piano saiu ontem à noite, infelizmente. Dava jeito ao vinho tinto ter com quem falar sobre música de colarinho branco, em vez de ficar fechado à chave em casa por uma rolha de cortiça, engarrafado, a velar espelhos e saxofones, num altar abispado, que chamava por nós em lume brando.
Ficou o altar para melhor oportunidade, o piano verteu o seu próprio som para dentro de um copo com pingos de pauta, e anoiteceu alguém em vez da noite, que desperta, sai da cama, desaparece do escuro, afogueia as horas por volta das sete da manhã, um dia acorda, lava a cara com água da chuva, vai trabalhar despenteado, come um pão solteiro pelo caminho, toma café em frente a duas mulheres vestidas, põe os olhos nos jornais, não vê ninguém feliz em nenhuma parte do mundo, tira os olhos do corredor da morte, apanha o metro no intestino do chão, trabalha resignado numa mesa resignada, come vaca morta ao almoço, bebe gás castanho escuro, caga entretanto a última parte da véspera, trabalha por trabalhar, os jornais já estão a morrer ao ir embora, enfia-se no chão, emerge perto de casa, caminha os passos que faltam, compra rosas podadas para oferecer à mulher, é um animal doméstico enquanto homem , compra vinho manso, cor de salmão, faz planos com penetração, faz exercícios com a língua, finge um orgasmo, o dela, está a chegar outra vez à noite, vai comer o que houver no prato, deve ser peixe afogado em azeite no forno, vai adormecer num cama fria, dormir em ponto morto, como a vida quiser, ele quer, o dia.

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