Coisas que podiam ser assobiadas (2)

25.11.20

Um saco do Continente a tiracolo, dois sacos de plástico na mão esquerda, a carteira e um derradeiro saco de compras na mão direita. Mais detalhe menos detalhe,  uma empregada de limpeza do aeroporto do Porto chegou ao local de trabalho. “Deve vir aí alguém importante”, disse, no único momento de incontinência verbal, ao passar pelos polícias de serviço, e deve ter-lhe custado imenso conter-se, mas estavam ali demasiadas câmaras de televisão, tripés, jornalistas e até máquinas fotográficas, e ela tinha de comportar-se. De resto, nem bom dia, nem boa tarde. 

Boa tarde teria sido mais apropriado. 

A voz redireccionou a nossa atenção. Passámos, em vez do horizonte, a olhar o lado do aeroporto, encostados ao posto de sentinela. Umas calças de fato de treino escuras, provavelmente cinzentas, uma grossa camisola de lã cor de rosa, um penteado oleoso pousado na linha dos ombros, uma passada rude, um corpo pesado e baixo. Posto isto a nossa concentração profissional regressou à procedência quando as sirenes das motas da polícia se anunciaram. O autocarro do FC Porto apareceu de imediato. Certas tardes preparam-se, sobem ao palco, executam o seu número de ilusionismo, desaparecem. Magia pura.    


Coisas que podiam ser assobiadas (1)

23.11.20

Um dia o J. chegou a casa e a casa tinha ido ao supermercado. Ficou triste. Espantado. 

No lugar da casa havia agora um imenso espaço vazio. Só o jardim continuava no sítio. Bem, na verdade a lavandaria, a biblioteca e a garagem também continuavam no sítio. Quem  percebeu que a casa tinha ido ao supermercado foi o bisavó. Ela chama-se M. J. e tem oitenta e oito anos. O J. ficou muito curioso. A bisavó ficou cheia de vontade de partilhar com ele tudo o que tinha visto. Era inacreditável, disse-nos. 

A casa fartou-se de estar sozinha durante o dia. Pegou na chave do carro, colocou um casaco pelos ombros, calçou umas botas muito grandes e lá foi ela. O chão até abanou.  


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