os meus livros

24.10.17



















FUMADORES

SINOPSE

Cada pessoa sai à rua com metade da alma a céu aberto, na lapela.A outra metade vai escondida no bolso do corpo, a cabeça. Nada bate certo entre a superfície de dois homens influentes (um padre e um deputado) e o seu subsolo. Uma mulher esconde os olhos do sol e o nome do mundo. Avô e neto não foram avô e neto e vida inteira e também não o serão para sempre. Os habitantes deste livro têm todos duas coisas em comum: fumam e cada um esconde a sua a verdadeira essência. À margem, um leitor vive confortável dentro das páginas, mas tem grandes dificuldades quando é preciso ler a realidade.

EXCERTO

"Essa tua ideia de mandar pôr cordas de guitarra no chão e de chamar elevador ao eléctrico, agrada-me esse fado. Gosto de quando pões à janela as camisolas às riscas, gosto do teu futebol a secar ao sol, ficam-te bem o verde e o branco de manhã cedo. E os barcos. Os barcos no teu rio navegam-me o raio da alma. Deve ser do verbo começar, apontado ao cais, repetido com as ondas.

Ficava-me bem dizer-te qualquer coisa a estibordo, mas nestas coisas dos sentimentos tenho medo de ir ao fundo.
O padre em Lisboa era mais um homem e fazia por se confundir com as mulheres. Lançou a acendalha das palavras a uma estudante de Belas Artes. Ela desenhava a ponte vermelha e o rio verde com o mesmo carvão preto. Em brasa, o padre reconheceu o alcance do madrigal nos olhos da cor do Tejo, houve ali um esticão, um sorriso encalhado à mercê das boas vagas. Encolheu então o padre os ombros, disfarçando o embaraço na medida do possível, voltando as costas ao Cristo de Almada, ficou branco como a estátua ao dar conta dela, mas logo se recompôs, a miúda tomou a dianteira do engate, vens ou não vens, ficou um ponto de interrogação no ar, que se evaporou num ápice, o padre agarrou-lhe a mão no maldito miradouro, uma alva tábua de salvação, concretizou a fuga ao fantasma da outra margem. Apanharam o primeiro eléctrico e seguiram pelas cordas de guitarra até parte incerta. Lá chegados, a desenhadora misturou ervas secas com tabaco. A partir daí a cabeça do padre teimou em não sair do Pragal."
 © 2013
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MORDE


SINOPSE

O jornalismo morreu. Hector Plata vive dentro de um cadáver que ainda não sabe da notícia.Fora do jornal, o redactor Hector nem sempre assimila os sinais de vida e passa por narrador anónimo da sua própria existência. Ao futuro que lhe vai acontecendo, umas vezes guarda-o, noutras o futuro foi como se nunca tivesse acontecido. Comer e ser comido pelo tempo são duas condições permanentes. A história sobrevoa Barcelona e aterra algures no norte de Portugal.

EXCERTO

"A dentição é um mecanismo animal de auto-defesa e de ataque, uma lâmina de corte, uma parede estética, um exército precioso que ajuda a dizer as palavras como elas devem ser ditas. Escovo os dentes, faço o que tenho a fazer, preparo os ossos para o abraço de Meritxell, as faces para os beijos de Olatz, estico os braços e é com eles que vou apertar num só gesto o Carlos e a Aurora, e de pensar que a história de amor mais próxima de mim começou era uma vez uma tarde cinzenta e eu deixei-me levar pelo som das cordas de aço, seis, pelos dedos das mãos de homem, dez, pela sua voz, uma, e pensar que o amor começou no diâmetro de uma moeda de um euro e cresceu, e que o plantei no cartão de uma caixa de sapatos, sem terra, sem água, sem mais natureza do que a dos sentidos de um homem e de uma mulher. Nasceu do nada. O Carlos é rouco de voz, baixo de altura, magro de peso, moreno de pele, comprido de cabelo. Aurora aceitou. O destino quis."

 © 2012
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NOVE

SINOPSE

Em 1942, os melhores avançados sul-americanos, que eram  nove, não tiveram campeonato do mundo de futebol.  Hector Plata, argentino, narrador de golos profissional, enviado da Radio Golito, percorreu o continente à procura de uma história com sentido de baliza e o que encontrou foi um grupo de homens sem sentido de vida.
Afastada geograficamente da Segunda Guerra Mundial, a América do Sul escapava à mortandade da Europa e continuava a viver a paz possível entre velhas ditaduras e novas liberdades.

EXCERTO

"O argentino Hector Plata, narrador de golos profissional, caiu do comboio na estação de Bogotá, pontapeado no cós das calças pela pata direita do revisor, um aprumado mancebo de Cucuta, a quem tinha chamado animal. Nunca antes passara o semelhante pelos olhares incrédulos dos viajantes, pelo que se puseram cabeças de fora, mãos a espreitar às janelas, não só no vagão da contenda, como também na restante cauda de ferro.
O barulho da desavença partira do vagão de luxo, um lugar muito impróprio para exceder os limites do som, mas o certo é que partira. O enviado da Rádio Golito, ponta-de-lança da informação desportiva sul-americana, um craque, fora posto numa reserva de primeira classe pelo patronato, era benquisto e idolatrado, havendo mesmo quem o incluísse no patamar dos maiores astros da bola, por aquilo que ele fazia com voz. A sua voz punha o futebol na estratosfera, ele nascera para aquilo, o relato, assim como os outros, os artistas das quatro linhas, tinham nascido com os pés virados para a bola.

Um comboio inteiro estranhou então a algazarra vinda de onde vinha, ultrapassando os tabiques dos compartimentos e até mesmo carruagens, umas a seguir às outras. Hector Plata, no seu bem-posto assento, aguentara até onde pudera o desplante do revisor, que o mandara sair na próxima estação, mal soubera do propósito da viagem do narrador, a quem tinham incumbido de fazer uma entrevista de fundo a Noveno Brum, o grande goleador do Fútbol Club de Bogotá. No fim-de-semana anterior Noveno Brum tinha marcado seis golos ao Cucuta Deportivo, onde milita o irmão do revisor, que ainda por cima é guarda-redes e foi vazado meia dúzia de vezes pelo canhão existente no pé esquerdo de Noveno. Um outro motivo deu força ao ímpeto vingativo do pica, um motivo familiar, porque sendo ele sobrinho do chefe de Estação, tinha salvo conduto para agir imprudentemente, e mais tinha quando em causa estava a honra do nome de família Godoy. Lembremo-nos que o mundo estava nos anos de 1940 e que a democracia ainda não tinha apanhado o comboio."

 © 2014

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