O arrumador de carros contava as últimas do seu dentista, ao fim e ao cabo um arrumador de dentes postiços, dizia-me ele, desdentado, destapando a inabilidade de arrumador do dentista, ou então pondo a nu a falta de cálcio da sua pequena história, inventada só para mim, à espera de que me caíssem cinquenta cêntimos de uma mão e um cigarro da outra, mas eu nada, nem uma nem duas, mais atento à falta de comparência dos incisivos do que ao rigor das palavras que ele assobiava, porque lá está, quanto menos marfim, menos latim.
Tem tudo isto a ver com o escritor cubano Reinaldo Arenas, com o período da sua prisão no Morro, onde, para além de tudo o resto, era a fome tanta e ele, certa vez, no escuro, ao dar com um saco cheio de pães, mordeu forte e feio, mas de tal forma que partiu dois incisivos. Às mãos da ditadura, regime arrumador de pessoas, passou a ter nenhum motivo para sorrir, mais um.
O arrumador, que me apareceu do tronco de uma árvore como quem vem do passado, lembrou-me de andar com livro para trás. A página 288. A página 288. Tinha jurado não me esquecer dela, do último parágrafo que ela deixou entrar. E que dizia, a propósito da entrada no Morro: ”Em O Mundo Alucinante eu falava de um frade que passara por várias prisões sórdidas (incluindo o Morro). Quando ali entrei decidi que dali em diante teria mais cuidado com o que viria a escrever, porque parecia condenado a viver no meu próprio corpo o que escrevia”.